Conexão sapiens
A ciência desvendando você!
O Conexão sapiens busca acender a lenha grossa do entendimento que permanecerá queimando por anos, e não o fogo de palha de uma estória empolgante e irrelevante, já esquecida na semana seguinte.
Kald Abdallah
Medico, cientista e executivo
@kald27042024
Conexão sapiens
A complexidade e o primata contador de estórias. #2
O ser humano evoluiu em um ambiente que mudava lentamente e muito mais simples com instrumentos cognitivos desenhados para tal ambiente – onde estórias tinham um papel central. Porém a complexidade do mundo de hoje não tem precedentes e frequentemente a sensação prazerosa de ouvir uma boa estória e entender algo é uma ilusão. Portanto é fundamental atualizar os instrumentos cognitivos para se adaptar a essa nova realidade. Pensar cientificamente significa ouvir as estórias do dia a dia com muito cuidado e aceitar a ambiguidade e a incerteza do mundo que nos rodeia, construindo posições após uma reflexão cuidadosa, com conceitos e crenças mais flexíveis e baseadas em evidências. Também significa que suas posições podem ser falsificadas, tudo o que você acredita está aberto a ser desconstruído e reaprendido, ou seja, aceitar a própria ignorância com objetividade e compaixão - este é um dos princípios mais fundamentais da ciência. Pensar cientificamente não se aprende do dia para a noite, isso é uma capacidade que deve ser desenvolvida gradualmente, porém é perfeitamente possível treinar a nossa cognição e aprender a pensar sistemicamente e cientificamente, pois os princípios são relativamente simples e aplicáveis ao dia a dia.
@kald27042024
Dunning–Kruger effect - Wikipedia
Complex system - Wikipedia
Smith, D., Schlaepfer, P., Major, K. et al. Cooperation and the evolution of hunter-gatherer storytelling. Nat Commun 8, 1853 (2017).
The Art of Storytelling: From Parents to Professionals. Hannah B. Harvey, Ph.D.
Por favor me enviem sugestões, críticas construtivas e perguntas. Me sigam no Instagram @kaldconexaosapiens e para concluir, caso você ache que este é um assunto que vale a pena, por favor espalhe essa notícia, tem um novo podcast - Conexão Sapiens: a ciência desvendando você.
o Um grande abraço do Kald.
Conexão Sapiens: a ciência desvendando você!
Podcast número 2 da fase inicial, área sistema.
A complexidade e o primata contador de estórias.
1. Aqui é o Kald, muito bom estar de volta aqui com vocês no nosso segundo episódio, gostaria de avisar que irei regularmente lançar episódios com o objetivo único de responder perguntas acumuladas. Eu tinha esperança de uma boa resposta ao episódio de introdução, mas confesso que fiquei surpreso com o tamanho e velocidade da resposta positiva, muito obrigado por todas as notas e comentários que recebi, fiquei emocionado e prometo continuar tentando o meu melhor em cada episódio que eu lançar. Também recebi comentários discordando de alguns pontos, aviso que não busco estar certo, mas ser útil e efetivo. Portanto caso você não concorde com algo, sinta se a vontade de desconsiderar essa parte e utilizar somente o que você concorda e for útil para sua jornada.
2. Quando eu era criança em Borrazópolis, não era muito comum ficar vendo televisão, pois se a minha memória não falha, costumava brincar na rua até ficar escuro. Mas na manhã de domingo, gostava muito de assistir Globo Rural e Som Brasil. Adorava ouvir os causos que eram contados nestes programas, principalmente do Rolando Boldrin. Também gostava muito das músicas tocadas entre estórias das fazendas e sítios do Brasil afora. Eu comia uma coxinha da padaria da esquina, uma Coca-Cola, e assim passava a manhã de domingo. Esta é uma memória muito feliz... Até hoje fico emocionado quando escuto a música Vida Marvada.
3. Nosso caráter e nossa identidade são construídos gradualmente no decorrer de muitos anos e incluem estórias que a gente contou e ouviu. Contar estórias é uma característica universal do ser humano e um dos componentes evolutivos da nossa sociedade altamente cooperativa e ultrassocial. Estórias viciam, literalmente, nossa cognição evoluiu e foi moldada por estórias. Durante o processo de evolução, seres humanos se sentaram em volta do fogo cozinhando, comendo e conversando. Há quanto tempo exatamente humanos começaram a falar e desenvolver uma linguagem mais sofisticada não dá para ter certeza, pois a comunicação verbal não deixa resquícios ou fósseis. Porém existem evidencias genéticas de que a linguagem humana exista há mais de 500 mil anos. Durante esse longo processo de evolução da linguagem, contar estórias teve um papel fundamental, estas atraem nossa atenção, mostram quem somos, como pensamos e quem são as pessoas ao nosso redor.
4. A cultura humana foi transmitida através das gerações por meio de estórias, o conhecimento transmitido verbalmente de uma geração para outra teve um papel fundamental antes da invenção da escrita. Só para se ter uma ideia, desde que os primatas começaram a andar de pé até o momento em que o Homo sapiens inventou a agricultura por volta de 10000 anos atrás, se passaram vários milhões de anos. Considerando que cidades só surgiram após a agricultura, os seres humanos conviveram em pequenos grupos de 50 a 150 indivíduos por mais de 99% do tempo que passou desde o surgimento do bipedalismo. Dentro desse grupo pequeno de indivíduos, a cultura e estórias permitiu formar uma identidade coletiva.
5. Contadores de estórias tinham uma função fundamental na recreação e na brincadeira, os melhores eram admirados pelo grupo, talvez a primeira artista famosa tenha sido uma grande contadora de estórias.
6. A cultura e estórias buscam modelar comportamentos que promovem uma sociedade moral, cooperativa e engajada, criando ideais de comportamento a serem imitados – por exemplo, quando as personagens não desistem, criam um modelo a ser seguido. Desistir ganha então um rótulo ruim. As estórias definem padrões desejáveis para a sociedade, com virtudes como a persistência, criatividade, honestidade, flexibilidade, iniciativa e coragem. De uma forma simplista, podemos dizer que palestrantes motivacionais fazem exatamente isso, contam estórias que visam modelar comportamento.
7. Contando estórias os seres humanos aprenderam a fazer julgamentos morais, prática que teve um papel importante no desenvolvimento da nossa cognição moral. A combinação de estórias, conversas e fofoca formou uma sociedade moral e cooperativa, promovida em cada um devido à preocupação profunda com a própria reputação.
8. Estórias também podem ter um papel emocional de cura e catarse, liberando o indivíduo da dor e da tristeza. Por exemplo, alguém que tem medo de relâmpago pode ficar mais calmo quando descobre que o relâmpago é o Deus Thor feliz celebrando uma vitória, mudando o contexto de como se vê o relâmpago.
9. A imitação e contar estórias exerceram um papel fundamental e sinérgico no processo de aprendizado. O ser humano, especialmente quando jovem, tem uma propensão natural de imitar – o cérebro humano tem vias neuronais especificas para a imitação. Durante o processo de evolução, adultos ensinavam fazendo, conversando e contando estórias no decorrer de anos, enquanto os aprendizes ouviam estas estórias e imitavam o comportamento dos adultos, consolidando a transmissão da cultura. Ensinar aumentava a reputação individual e aprofundava as conexões sociais. Nossa cognição não evoluiu para aprender sozinho.
10. Os adultos dividiam a responsabilidade de cuidar das crianças e estas conviviam e brincavam independente de sexo ou idade – o cuidado alomaterno, cuidado de alguém que não é a mãe, foi um dos fatores diferenciadores da espécie humana, e foi um fator tão importante durante o processo de evolução humana que irei dedicar um podcast a esse assunto no futuro. Participar do cuidado dos jovens aumentava o status social e assegurava uma colaboração mais profunda entre as gerações. Poderíamos dizer que um dos grandes fatores diferenciadores dos seres humanos em relação aos outros primatas é a invenção da creche comunitária, ambiente ideal para se contar estórias.
11. Durante o período pré-agricultura, a comunicação buscava transmitir informações, ensinar habilidades, fortalecer os laços sociais e promover a cooperação. Todos no grupo tentavam formar uma reputação sólida para preservar o status diante do restante do grupo. A necessidade de ser aceito e participar do grupo está profundamente enraizada na nossa natureza. Hoje em dia se observa como o isolamento social causa um sofrimento profundo em seres humanos, refletindo a ultrasocialidade humana. O surgimento da comunicação teve um papel central na transformação para uma espécie ultrassocial.
12. Considerando o design humano, em condições razoavelmente favoráveis, pode-se projetar o seguinte cenário: Desde o surgimento do bipedalismo até a invenção da agricultura, os seres humanos evoluíram no decorrer de vários milhões de anos em grupos pequenos de 50 a 150 pessoas, com relações sociais profundas e longas com a família, amigos e pares românticos. A cognição geral humana evoluiu para resolver problemas locais em pequena escala, colaborando ativamente com os outros durante uma análise, decisão e execução, ou seja, exercitando uma inteligência coletiva, que fortalecia o diálogo, as conexões sociais e a cooperação entre todos. Havia uma cultura comum que tinha um papel central de manter a colaboração e as normas de funcionamento desta aldeia, onde estórias eram os cruciais. Os adultos dividiam a responsabilidade pelo cuidado e ensino das crianças e jovens, numa sociedade relativamente igualitária, porém com status social e hierarquia baseada em mérito. Cada indivíduo tinha uma intimidade profunda com o próprio corpo e com o ambiente ao redor. As mudanças no ambiente, a formação das relações sociais, o desenvolvimento individual e o aprendizado aconteciam gradualmente no decorrer de anos, dando oportunidade para cada um de desenvolver uma identidade própria e única dentro do grupo. Esta sociedade tinha poucos objetos e propriedades, uma vida nômade, e vivia em contato muito próximo com a natureza e o clima. A morte estava frequentemente presente, especialmente entre os jovens e crianças devido à alta mortalidade infantil, perder um membro da família ou um amigo próximo não era um evento raro. A violência física também era algo presente, porém em geral limitada a eventos relacionados à punição e ou autodefesa. O risco com acidentes, doenças e animais perigosos era natural e constante. Este cenário fictício cria a possibilidade de se imaginar como o ser humano viveu por mais de 99% do tempo desde o surgimento do bipedalismo.
13. A cultura e as estórias coevoluíram e foram instrumentos altamente efetivos na expansão humana, porém considerando a diferença entre a vida do ser humano antes da agricultura e hoje, eu diria que um grande desafio humano é um aumento sem precedentes na complexidade da nossa vida diária. Além disso, na sociedade atual um indivíduo está sendo exposto a um volume sem precedentes de estórias e informações, que cria uma ilusão superficial de entendimento que não existe, mascarando uma complexidade profunda e crescente - a mídia social intensificou e acelerou este problema.
14. O problema nem é tanto não saber, e sim não ter consciência de que não se sabe. O ruído gerado pelo alto volume de estórias e informações que cada pessoa recebe ofusca a complexidade crescente e dificulta o reconhecimento da nossa própria ignorância. Como disse o historiador Yuval Noah Harari no seu livro Homo Deus, quando ele descreve as forças históricas que impulsionarão o progresso da ciência, “A maior descoberta científica foi a descoberta da ignorância. Quando os humanos perceberam quão pouco sabiam sobre o mundo, de repente tiveram uma boa razão para procurar novos conhecimentos, o que abriu o caminho científico para o progresso.” Como disse Harari, a ciência avançou depois que os líderes dos países do oeste descobriram a própria ignorância e acredito que o indivíduo também se beneficiaria muito com o reconhecimento das próprias limitações cognitivas, para tal é fundamental reconhecer a neblina cognitiva gerada pelas informações e estórias.
15. Falaremos sobre várias outras diferenças entre a sociedade atual e a sociedade pré-agricultura em futuros podcasts, pois este é um ponto crucial no entendimento das nossas aflições nos dias de hoje.
16. Mas afinal o que é complexidade? O que quero dizer quando falo um sistema complexo?
a. A economia global, uma floresta, a sociedade humana, o sistema imunológico são exemplos de sistemas complexos, todos tem muitos componentes interdependentes. Os componentes são diversos e interagem um com o outro de uma forma dinâmica, se adaptando a mudanças.
b. Complexidade não é linear, com interações imprevisíveis, podendo causar o fenômeno de emergência. Emergência não no sentido de algo urgente, como uma emergência médica, mas no sentido de algo que emerge, que surge. A emergência não é explicada pela análise dos componentes individuais do sistema, pois estes fenômenos não podem ser previstos de forma linear, com análise simples de causa e consequência, eles emergem quando múltiplos componentes do sistema complexo interagem entre si e com o ambiente. Exemplos de emergência são a linguagem, crises econômicas, imunidade, consciência humana e a amizade.
c. Esse dinamismo de interações diferencia complexidade de algo que é complicado. Um ecossistema é um sistema complexo, um computador é um aparelho complicado. O computador está cheio de componentes, porém não há adaptabilidade ou interação dinâmica, é complicado, mas não complexo.
d. Um sistema complexo tem uma rede dinâmica de interações, é robusto e frequentemente resiste há desafios, se adapta a novas situações, porém algumas vezes apresenta reações surpreendes a eventos pequenos, quando há uma interferência em um ponto crítico (critical node). Alguns exemplos de pontos críticos são: a taxa de juros na economia, as abelhas em um ecossistema, a tolerância periférica no sistema imunológico, entre outras.
e. Ou seja, um sistema complexo é composto por um número grande e diversificado de componentes interdependentes, com uma relação não linear, adaptabilidade, fenômenos emergentes, com pontos críticos, não explicável com estórias lineares de causa e efeito e difícil de prever.
f. O conhecimento e entendimento da complexidade aumentou significativamente nas últimas décadas devido há vários fatores, entre eles a utilização de modelagens preditivas. Por exemplo, uma das pesquisas na qual eu estava envolvido utilizou modelagens matemáticas de crescimento tumoral, que conseguiam prever a expectativa de vida. Outro exemplo são os modelos de computação utilizados na previsão do tempo.
17. A sociedade humana é um sistema complexo, e cada indivíduo é parte integrante deste sistema dinâmico em constante mutação. Reconhecer-se como um componente integral de um sistema complexo permite uma mudança da forma de pensar. Pensar sistemicamente, do inglês systems thinking, requer um uma mudança significativa é pode ser treinada. Este é um dos objetivos da Conexão sapiens, aumentar a consciência e treinar o pensamento sistêmico.
18. Conversarei mais a respeito de complexidade nos podcasts desta série, principalmente o conceito de ponto crítico, pois este será importante na hora de desenhar intervenções para melhorar o sistema de uma forma efetiva e econômica – ou seja, qual é a ação simples que causara uma mudança profunda? Aprender a pensar sistemicamente permite uma análise mais efetiva na decisão do que fazer para melhorar e aprender, pois o número possível de intervenções é incontável, porém mapear o sistema no qual estamos inseridos permite identificar os pontos críticos e selecionar as ações mais efetivas – O objetivo é de pensar sistemicamente para poder agir pontualmente.
19. A forma como se entende o mundo através de estórias era adaptada ao ambiente que o ser humano vivia antes da agricultura, porém hoje este instrumento tem limitações graves. Precisamos entender o contraste entre viver em um mundo mais complexo e ainda aplicar os antigos instrumentos para entender esse mundo. Aprender como a ciência entende esse desafio permitirá a cada indivíduo pensar melhor, cultivar uma socialidade mais saudável, desenvolver uma individualidade mais profunda e adaptar-se mais efetivamente ao mundo de hoje.
20. Por exemplo, as estórias que contamos no Brasil nas discussões políticas descrevendo basicamente dois grupos, a esquerda e direita – classificação criada há mais de dois séculos durante a revolução francesa. Em uma economia de mercado atual, qual a efetividade de categorizar representantes políticos de acordo com uma classificação subjetiva e heterogênea criada há mais de 200 anos? Será que é possível mensurar com dados a diferença entre políticos de esquerda e de direita? Caso haja diferenças significativas nos dados coletados, será que esta diferença tem relevância? Qual a correlação entre um político de esquerda/ direita com competência administrativa? Considerando hipoteticamente que todos concordam que o candidato ideal deve ser competente e honesto, uma metodologia subjetiva e antiga sem correlação com critérios que definem competência e honestidade é completamente inútil. Ou seja, de forma cientifica, acredito que a critério “esquerda vs. direita” não é metodologicamente robusto o suficiente para identificar candidatos ideais.
21. Qual o problema de se pensar desta forma polarizada e subjetiva? Acredito que é a ilusão de entendimento que só existe imaginação da população e não em dados objetivos que podem ser mensurados sistematicamente. Qual é o impacto de se utilizar um método inadequado para seleção de líderes? Líderes mal preparados! O problema que eu vejo de acreditar na ficção criada pelas estórias é a cegueira coletiva que previne uma perspectiva diferente. Infelizmente a grande maioria da população está completamente distraída com o ruído das estórias que se dissecadas seriam completamente desconstruídas e não passam de poluição cognitiva.
22. O ideal, ao invés da cacofonia atual, seria uma metodologia mais objetiva de selecionar líderes políticos: com métricas especificas de competência administrativa, ética, entre outros critérios. Já imaginou o impacto para todos caso a população adotasse para a seleção de líderes as notas dadas a critérios objetivos e identificados por organizações independentes? Seria uma metodologia similar a forma como líderes da iniciativa privada ou da ciência são selecionados. Também seria ideal exigir de cada candidato propostas baseadas em evidências, ou seja, políticas públicas desenhadas após uma análise cuidadosa dos dados, ajustada após uma análise dos resultados, com métricas de sucesso predefinidas. O impacto de uma mudança da metodologia utilizada no processo de seleção de candidatos no Brasil poderia ser transformador, porém isto necessitaria de uma mudança profunda na forma de pensar de cada eleitor. É exatamente assim que eu voto, pois frequentemente seleciono um candidato ou candidata que nunca tinha ouvido falar anteriormente, porém foram identificados como os mais competentes por organizações de alta credibilidade.
23. Para ilustrar a incompetência metodológica dos líderes políticos atuais, a pandemia ofereceu uma oportunidade de um experimento natural, de comparar os resultados da liderança política e científica. Considerando a resposta dos líderes políticos entre todos os países, alguns responderam razoavelmente bem, porém na grande maioria dos países a resposta foi fragmentada e até caótica. Enquanto isso os líderes da ciência estavam tentando responder a pandemia cientificamente, os resultados falam por si mesmos: a causa da pandemia foi identificada, o cuidado médico foi refinado, novos tratamentos desenvolvidos, várias vacinas foram desenvolvidas em tempo recorde, a produção destas vacinas foi feita em larga escala e programas de vacinação mundial foram implementados. Todos estes resultados executados durante uma pandemia, em uma escala e velocidade sem precedentes, salvando milhões de vidas globalmente. Uma grande vitória da humanidade, portanto arrisco a dizer que os cientistas ganharam de goleada. Acredito que este experimento natural reflete bem diferenças na forma de pensar, enquanto a comunidade política está ocupada em contar estórias, um planejamento baseado em dados com metodologia científica robusta traz muito mais resultados.
24. Um dos grandes desafios da humanidade hoje é se adaptar a uma complexidade sem precedentes - considerando a evolução da linguagem humana, não é de se surpreender que um político com uma estória bem contada, com um vilão e um herói será muito mais atrativo do que um cientista tentando explicar um problema complexo, descrevendo incertezas e nuances. Porém, caso você consiga enxergar através do véu de estórias que cobre a complexidade e entender os princípios que governam o pensamento científico, a decisão será muito mais fácil pois, a maior arma na resposta ao desafio da complexidade é a ciência.
25. Porém gostaria de enfatizar que a estória é um instrumento valioso, a ciência cada vez mais busca utilizar estórias para divulgar ideias e conceitos, muitos dos cientistas que ganharam notoriedade foram grandes contadores de estórias. Caso haja uma metodologia robusta, uma intenção apropriada e a necessidade de disseminar informações, uma estória bem construída é um instrumento poderoso. Treinamento em como contar estórias pode trazer um grande valor para o indivíduo também, pois pode favorecer a sua vida profissional e pessoal e fortalecer as suas relações sociais. Uma das recomendações que faço quando eu estou mentoreando uma pessoa introvertida e o treinamento em como contar histórias, pois isto facilitará as relações sociais apesar da introversão.
26. Aprender a ter um olhar sistêmico nos faz mais humildes, reconhecer que nosso cérebro não foi moldado para compreender a complexidade do universo foi uma das experiências mais profundas e iluminadoras que já tive. O momento eureca foi quando percebi que grande parte do meu conhecimento era formado por estórias que estavam longe de capturar a complexidade que me envolvia. Descobrir a ignorância e a limitação cognitiva humana pode ter um efeito paradoxal, capacitando o aprendizado de como utilizar o pouco que temos da forma mais eficaz possível, ou seja, reconhecer a nossa incompetência cognitiva pode nos tornar mais sábios.
27. Após perdermos a confiança de que as estórias que estamos contando um para o outro no dia a dia são realmente a verdade absoluta, é possível abraçar a ambiguidade e a incerteza da vida de hoje, gradualmente construindo posições mais sólidas e baseadas em evidências sistemáticas. Ou seja, a gente começa a pensar como um cientista. Esse pensamento científico não necessariamente vai aumentar a confiança que você tem, aumentará o número de vezes que você chega à conclusão de que não sabe o suficiente para formar uma opinião. Saber mais não significa uma confiança maior, pelo contrário. Aprender a pensar cientificamente significa reconhecer a própria ignorância, um passo fundamental no caminho da sabedoria. Este é o efeito Dunning-Kruger.
28. Resumindo, o ser humano evoluiu em um ambiente que mudava lentamente e muito mais simples com instrumentos cognitivos desenhados para tal ambiente – onde estórias tinham um papel central. Porém a complexidade do mundo de hoje não tem precedentes e frequentemente a sensação prazerosa de ouvir uma boa estória e entender algo é uma ilusão. Portanto é fundamental atualizar os instrumentos cognitivos para se adaptar a essa nova realidade. Pensar cientificamente significa ouvir as estórias do dia a dia com muito cuidado e aceitar a ambiguidade e a incerteza do mundo que nos rodeia, construindo posições após uma reflexão cuidadosa, com conceitos e crenças mais flexíveis e baseadas em evidências. Também significa que suas posições podem ser falsificadas, tudo o que você acredita está aberto a ser desconstruído e reaprendido, ou seja, aceitar a própria ignorância com objetividade e compaixão. Esse é um dos princípios mais fundamentais da ciência. Pensar cientificamente não se aprende do dia para a noite, isso é uma capacidade que deve ser desenvolvida gradualmente, porém é perfeitamente possível treinar a nossa cognição e aprender a pensar sistemicamente e cientificamente, pois os princípios são relativamente simples e aplicáveis ao dia a dia. Irei conversar bastante a respeito disso nos episódios da área cognição.
29. Espero que a estória que contei hoje tenha sido clara! Enviem sugestões, críticas construtivas e perguntas. Para concluir, caso você ache que este é um assunto que vale a pena, por favor se inscreva e espalhe essa notícia, tem um novo podcast - Conexão Sapiens: a ciência desvendando você.
30. Um grande abraço do Kald.
Referencias:
· Dunning–Kruger effect - Wikipedia
· Smith, D., Schlaepfer, P., Major, K. et al. Cooperation and the evolution of hunter-gatherer storytelling. Nat Commun 8, 1853 (2017).
· The Art of Storytelling: From Parents to Professionals. Hannah B. Harvey, Ph.D.
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