Conexão sapiens

Alocuidado #5

Kald Abdallah Season 1 Episode 5

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Quando o engajamento com o bem-estar das pessoas e das futuras gerações é uma constante na nossa vida, os nossos problemas ficam menores, pois o olhar é panorâmico. Porém quando não se pratica o alocuidado, mais individualista fica nosso comportamento, mais desconectado do sistema, maior a incerteza, menor o sentimento de pertencer (belonging), gerando dor, medo e insegurança, tornando o comportamento mais individualista ainda. Este é um círculo vicioso em que a dor gerada pela desconexão piora o comportamento que gera a desconexão. É um pouco paradoxal imaginar que as pessoas com paz interior são aquelas que não pensam tanto assim em si mesmas, mas acredito que este é exatamente o caso.

@kald27042024

·       Extended parenting and the evolution of cognition. Natalie Uomini, Joanna Fairlie, Russel D Gray, Michael Griesser. Phil. Trans. R. Soc. 2020 B 375: 20190495. 

·       The evolutionary origin of human hyper-cooperation. Burkart, J., Allon, O., Amici, F. et al. Nat Commun 5, 4747 (2014).

·       Looking for unity in diversity: human cooperative childcare in comparative perspective. Burkart JM, van Schaik C, Griesser M. 2017 Proc. R. Soc. B 284: 20171184.

·       Broadening Perspectives on the Evolution of Human Paternal Care and Fathers’ Effects on Children. Lee T. Gettler, Adam H. Boyette, and Stacy Rosenbaum, Annu. Rev. Anthropol. 2020. 49:141–60.

·       Montessori education's impact on academic and nonacademic outcomes: A systematic review. Campbell Systematic Reviews. Justus J. Randolph, Anaya Bryson, Lakshmi Menon et. al. 2023;19:e1330.

·       Feldman, R. (2023). Father contribution to human resilience. Development and Psychopathology 35: 2402–2419.

·       Thornhill-Miller, Branden, Anaëlle Camarda, Maxence Mercier, Jean-Marie Burkhardt, Tiffany Morisseau, Samira Bourgeois-Bougrine, Florent Vinchon, Stephanie El Hayek, Myriam Augereau-Landais, Florence Mourey, and et al. 2023. Creativity, Critical Thinking, Communication, and Collaboration: Assessment, Certification, and Promotion of 21st Century Skills for the Future of Work and Education. Journal of Intelligence 11: 54.

·       Stuart, J, Kamerade, D, Connolly, S, Ellis Paine, A, Nichols, G & Grotz, J 2020, The impacts of volunteering on the subjective wellbeing of volunteers: A rapid evidence assessment. What Works Wellbeing.

Por favor me enviem sugestões, críticas construtivas e perguntas. Me sigam no Instagram @kaldconexaosapiens e para concluir, caso você ache que este é um assunto que vale a pena, por favor espalhe essa notícia, tem um novo podcast - Conexão Sapiens: a ciência desvendando você.

o Um grande abraço do Kald.

Conexão Sapiens: a ciência desvendando você.

Podcast número 5 da fase inicial de síntese, área sistema.

Alocuidado

1.      Aqui é o Kald, muito bom estar de volta hoje no quinto episódio, irei acumular as perguntas que recebi e periodicamente lançarei um episódio somente com perguntas e respostas. Recebi comentários discordando de alguns pontos, aviso que meu objetivo não é estar certo, mas ser útil e efetivo. Portanto caso você não concorde em princípio com algo, sinta se a vontade de desconsiderar essa parte e utilizar somente o que você concorda e for útil para sua jornada. Caso você ache que algum ponto é cientificamente inválido, por favor envie uma pergunta ou questionamento como seu racional. Caso haja algum comentário ou informação que você gostaria de entender a referência, sinta se a vontade de enviar uma pergunta também.

2.      Hoje farei uma síntese sobre a alocuidado, um dos três conceitos da pró-socialidade humana que eu queria destacar nesta fase sobre o sistema. Conversei sobre moralidade e colaboração. No próximo episódio irei resumir e demonstrar como estes 3 aspectos da socialidade humana interagem entre si formando um dos aspectos mais importantes da integração pessoal com o sistema. É claro que há muitos outros aspectos dentro de um sistema complexo, a separação de um conceito é artificial, uma construção mental para entender algo complexo. A cognição humana não foi desenhada para entender um sistema complexo, para tal a ciência, analisa conceitos separadamente para depois juntar e entender o todo.

3.      Quando eu era residente no Hospital das Clínicas da FMUSP em São Paulo, eu me lembro que um dos estágios mais difíceis da minha especialização era com um professor famoso que todos no HC conheciam bem. Ele costumava levar todos os residentes que estavam no rodízio do transplante renal para comer pizza uma vez por mês e frequentemente dava sugestões e conselhos sem ser solicitado a qualquer residente que estivesse no sétimo andar do Instituto Central do HC. Ele era é uma lenda, temido, admirado, caminhava pelos corredores confiante, emitia as próprias opiniões sem timidez ou hesitação. Uma coisa ele sempre me inspirou, a paixão por fazer o melhor possível pelo paciente. Seu grau de exigência nas visitas e discussões clínicas era tão alto, que antes das visitas nós frequentemente passávamos mal de ansiedade com náusea ou até diarreia. Em preparação para a visita semanal, lembro-me de chegar ao hospital muito antes de amanhecer com o céu escuro, cheio de estrelas, antes das 5 da manhã, para ter certeza de que tudo estaria perfeito na hora da visita que começava às 8. Não era fácil, porém o objetivo dele foi assegurar que a gente estivesse fazendo o melhor possível para o paciente. O que eu aprendi durante a minha residência carreguei comigo durante toda a minha carreira, porém demorou anos para eu perceber o impacto que ele teve em minha formação.

4.      Duas décadas depois, comecei a entender por que este professor era tão confiante e apaixonado pelo que fazia, a possibilidade de influenciar tantas vidas durante décadas, deve ter dado a ele um sentimento profundo de valor e satisfação pessoal. Não acredito que haja uma palavra que completamente capture o conceito que gostaria de apresentar hoje, que é a necessidade humana de proteger o futuro dos mais jovens com compromisso e paixão - utilizarei o termo alocuidado. O prefixo alo significa mais ou menos o oposto do prefixo auto, portanto a palavra autocuidado seria grosseiramente o oposto alocuidado. Eu fiz algumas buscas e não consegui achar esta palavra nos dicionários online de português, expandindo minha praxe de inventar palavras, a definição que utilizarei nesta discussão de hoje descreve o alocuidado como o cuidado, no sentido de proteger, nutrir, orientar, ensinar e ajudar, que é ofertado a um ser que não faz parte da família nuclear. Este cuidado pode se referir a qualquer ser vivo, porém com uma ênfase em proteger as pessoas mais jovens e/ou mais vulneráveis. De uma forma geral, significa assumir uma porção apropriada da responsabilidade que a humanidade como um todo deve ter pelo bem-estar geral dos seres vivos e em particular das pessoas da próxima geração, refletindo o nosso compromisso com o bem-estar de todos hoje e amanhã.

5.      O ser humano saudável em condições sociais regulares tem uma pró socialidade natural que se manifesta de diversas formas, sendo uma das raras espécies que podem ajudar um desconhecido espontaneamente, outras espécies que eventualmente ajudam a um desconhecido são espécies que também tem um alto nível de socialidade como os elefantes e os golfinhos. A evolução da socialidade humana está além do escopo da discussão de hoje, porém alguns pontos vale a pena destacar.

6.      Não é possível falar da socialidade humana sem falar do amor. Há espaço para se argumentar que o amor primordial surgiu da relação entre mãe e prole, provavelmente muito antes do surgimento dos primatas. A relação entre a mãe e a prole é fundamental entre os mamíferos, e em seres humanos o relacionamento entre mãe e bebê não tem comparação, este é o alicerce fundamental da socialidade humana. Esta conexão se forma muito rapidamente através de vias neurobiológicas muito profundas, envolvendo a ocitocina entre outros biomediadores, em futuros episódios, discutirei os mecanismos biológicos que propiciam a formação de laços entre seres humanos, principalmente o amor e a amizade. A mãe é a pedra fundamental da socialidade humana, portanto, outra palavra que pensei em utilizar para descrever o cuidado das gerações futuras seria amadrinhar.

7.      Além da relação mãe e bebê, há um debate intenso na comunidade cientifica sobre quais outros fatores promoveram na nossa espécie os altos níveis de socialidade e cooperação, porém um destes fatores foi com certeza o fenômeno do cuidado alomaterno (definido como cuidado do bebê ou criança, no sentido de proteger, nutrir, orientar, ensinar e ajudar, quando provido por alguém que não é a mãe). Este termo também e chamado de criação cooperativa (do inglês, cooperative breeding). Durante a evolução humana no período pré agricultura, o cuidado alomaterno foi praticado de forma extensiva e foi o fator preditivo mais significativo da alta socialidade humana quando comparado com 15 outras espécies de primatas. A forma como o ser humano evoluiu com o pai, irmãos e irmãs mais velhas, tias e tios, avós e amigos ajudando a cuidar das crianças foi um fator diferenciador da espécie humana e crucial na evolução da ultrasocialidade.

8.      O papel do pai e da avó provendo cuidado alomaterno deve ser destacado e são grandes diferenciadores da raça humana quando comparado com outros primatas, há evidências científicas que ambos tiveram um papel importante em expandir a pró socialidade e intensificar os laços sociais humanos. Em um grupo de 50 a 150 indivíduos, o aumento do número de laços entre indivíduos não tipicamente observados em outra espécie intensificou e expandiu a rede social humana, formando um time muito mais coeso, cooperativo e capaz de transmitir a cultura mais eficientemente. Talvez poderíamos dizer que o cuidado alomaterno espalhou o amor entre os humanos, formando uma sociedade colaborativa. Outros fatores importantes que expandiram a intensidade, o número e a qualidade das relações humanas foram a linguagem, moralidade, cooperação, cultura, amizade e o amor romântico, discutirei estes fenômenos em futuros episódios.

9.      Um dos aspectos cruciais do alocuidado é a responsabilidade de ensinar e treinar os jovens. A imitação e contar estórias exercem um papel central e sinérgico no processo de aprendizado. O ser humano, especialmente quando jovem, tem uma propensão natural de imitar – o cérebro humano tem vias neuronais especificas para a imitação. Durante o processo de evolução, adultos ensinavam fazendo, conversando e contando estórias no decorrer de anos, enquanto os aprendizes ouviam estas estórias e imitavam o comportamento dos adultos, consolidando a transmissão da cultura. Ensinar aumentava a reputação individual e aprofundava as conexões sociais. Nossa cognição não evoluiu para aprender sozinho.

10. Uma das primeiras vezes que observei crianças formalmente provendo cuidado alomaterno foi em uma escola Montessori. As crianças do primeiro, segundo e terceiro anos do elementar ficam na mesma classe, e os alunos do terceiro ano supervisionam os colegas mais jovens. Como é típico do método Montessori, cada aluno trabalha no próprio projeto independentemente, com supervisão eventual. Todos os alunos podiam mover-se livremente pela classe e cada aluno sabia o que tinha que fazer. Caso houvesse dúvida, o aluno recebia suporte da professora ou de um aluno mais velho. Fiquei impressionado com a tranquilidade da classe, a disciplina de todos, sendo que a responsabilidade de ensinar era dividida entre os professores e os alunos do terceiro ano. Lembro-me bem das crianças do primeiro e segundo ano ansiosas para chegar ao terceiro ano e poder cuidar dos colegas mais jovens. 

11. A admiração e respeito pelos colegas mais velhos era evidente na classe de aula e ilustra bem a dinâmica dos relacionamentos sociais humanos saudáveis, onde o status social é genuíno e adquirido por mérito. Este fato não é de se surpreender, considerando que o ambiente da classe de aula Montessori e mais similar ao ambiente no período pré agricultura, crianças de diferentes idades interagindo mais livremente, propiciando relações sociais mais profundas de amizade e cuidado alomaterno. A escola é um ambiente ideal e uma oportunidade ímpar, pois indivíduos convivem por boa parte do dia e por tempo prolongado. Há uma oportunidade de se repensar o design da escola aplicando o aprendizado dos últimos 20 anos, podendo propiciar um ambiente que, ao invés de ensinar a memorizar fatos e fórmulas, aumenta o convívio social dos estudantes, estimula o desenvolvimento cognitivo geral, social, moral e emocional, criando oportunidades para formação de amizades profundas e cuidado alomaterno. 

12. Acredito que métodos como o Montessori estejam muito mais em linha com um ambiente que propicia um aprendizado natural, pois evidências científicas demonstram que crianças que estudaram pelo método Montessori apresentam melhores índices de controle emocional, função executiva, cognição social e geral. Considerando que há um consenso de que a criatividade, o pensamento crítico, a colaboração e a comunicação são as habilidades mais importantes para o profissional do futuro (os 4 Cs), forçar jovens e crianças a ficarem calados, sentados, sem poder interagir por horas a fio todos os dias é, na minha concepção, prejudicial ao futuro da criança.

13. Outra oportunidade de aprender e ensinar é quando crianças brincam juntas com pouca estrutura ou interferência de adultos. Eu me lembro que quando criança minha mãe costumava pedir para a gente ir brincar na rua e deixá-la em paz, e nós certamente obedecíamos. Costumávamos brincar de esconde-esconde e qualquer lugar na cidade estava dentro do limite da brincadeira. Quando havia uma criança mais jovem, sem condições de competir em igualdade, chamávamos de café com leite, ou seja, esta criança estava participando da brincadeira, porém ela não contava dentro da competição e o objetivo era que ela aprendesse – todos eram responsáveis por cuidar dela. Também lembro que as crianças mais jovens ficavam ofendidíssimas se a gente dissesse que elas eram café com leite pois todos queriam participar da brincadeira e competir em igualdade. Em um ambiente social saudável, mesmo crianças tem o instinto de ensinar e proteger os mais jovens, criando um hábito que pode continuar pela vida toda. Nota do autor, a gente chamava crianças pequenas de café com leite porque adultos e crianças maiores podiam tomar café, crianças pequenas tinham que tomar café diluído com leite. Mas todos tomavam café, lembre-se que isto era no norte do Paraná, uma das áreas produtoras de café mais importantes do país na época. Caso você queira brigar com um pé vermelho (pessoa nascida no norte do Paraná), mexe no café dela ou dela.

14. O bebê humano é vulnerável e continua vulnerável por anos, demandando o tempo e atenção dos adultos por mais de uma década. O aprendizado humano é lento, e a contribuição das crianças é baixa na primeira década de vida, principalmente nos dias de hoje. Em uma comunidade com 50 a 150 pessoas, como a sociedade humana antes da invenção da agricultura, cuidar das crianças era algo natural e todos da aldeia participavam, as crianças também cuidavam umas das outras, os mais velhos cuidando dos mais jovens, e todos brincavam e aprendiam juntos. O cuidado dos mais velhos com os mais jovens e a brincadeira formavam laços sociais e desenvolviam a cognição social, emocional e moral. Amizades formadas na infância duravam frequentemente a vida toda. Adultos cuidavam dos mais velhos pois estes foram as pessoas que cuidaram deles quando eram jovens, o relacionamento entre as gerações era profundo.

15. O bebê humano nasce sem habilidades e extremamente vulnerável, do ponto de vista de sobrevivência isso não faz sentido, a não ser que este bebê seja recebido dentro de uma sociedade que ensina e cuida - esta segunda parte faz a equação humana ter sentido, especialmente porque esta fórmula possibilita a formação de indivíduos únicos e altamente diferenciados, com habilidades flexíveis e relações sociais profundas. A flexibilidade nas habilidades do adulto permite a adaptação a diferentes nichos ambientais, também cria uma relação longa e profunda entre membros da sociedade responsáveis pelo treinamento e a próxima geração. O bebê humano nasce sem habilidades e vulnerável, em uma sociedade que ensina e cuida, capacitando a formação de uma espécie ultrassocial altamente flexível - a vulnerabilidade e longo treinamento de um bebê humano é uma característica da nossa espécie e não uma fragilidade. Feature, not a bug.

16. O cuidado alomaterno foi um fator fundamental no desenvolvimento da sociedade e diferencia o ser humano dos outros primatas, um reflexo da profunda pró socialidade humana. Porém é importante também reconhecer o valor que prover cuidado traz para o próprio indivíduo, respeito e admiração das pessoas, aumento da autoestima, aumento do status social, desenvolvimento da cognição moral, social, emocional e geral. Por exemplo, um adolescente temperamental é um grande professor. A gente cresce e aprende enquanto cuida e ensina.

17. Eu gostaria de elaborar um pouco e diferenciar o cuidado alomaterno do alocuidado, estou utilizando este neologismo com o objetivo de descrever um conceito mais amplo que cuidado alomaterno. A definição que gostaria de dar a essa palavra inventada - alocuidado, incorpora também a necessidade de se apoiar e ensinar os jovens de forma geral, responsabilidade pelas pessoas mais vulneráveis, esforçar-se para ser um bom modelo de comportamento, aprender as diferenças entre gerações e culturas, tornar-se uma fonte de apoio emocional quando necessário, aconselhar e refletir junto, entre muitas outras formas de se prover cuidado. O conceito de cuidado alomaterno está contido dentro do conceito de alocuidado, porém este inclui uma perspectiva muito mais ampla.

18. O alocuidado não é necessariamente algo grandioso que exige um sacrifício pessoal hercúleo, pois não estou dizendo que seres humanos são fundamentalmente mártires altruístas. Este cuidado pode se manifestar em ações simples do dia a dia, como por exemplo: mentoreando um colega mais jovem no trabalho, orientando um sobrinho sobre decisões profissionais, doando para as vítimas da enchente, voluntariando na escola, doando para instituições que apoiam pessoas sem teto, ensinando com carinho caso você seja um professor, cuidando dos seus pacientes com dedicação caso você seja um profissional de saúde, colocando o seu coração e o seu engajamento em dar o melhor de si pela geração futura, tudo dentro dos limites dos seus recursos e do seu tempo. 

19. Também acredito que o alocuidado seja fundamental no ambiente profissional na formação de líderes autênticos. Durante as conversas que tive mentoreando colegas nos últimos 25 anos, este foi um argumento que sempre defendi - você não conseguirá desenvolver-se profissionalmente e se tornar um líder sem investir genuinamente no crescimento das outras pessoas ao seu redor. Nunca foi fácil convencer as pessoas extremamente ocupadas que eu orientava de que ele ou ela deveriam gastar o precioso tempo treinando e orientando pessoas mais jovens, especialmente aqui nos Estados Unidos que é um país com uma cultura individualista. O benefício de cuidar é subjetivo e difícil de mensurar inicialmente, porém cumulativo e sistêmico, os líderes que eu mais admirei no decorrer da minha carreira sempre foram grandes mentores e tinham um profundo cuidado com as pessoas ao redor. A preocupação genuína com os colegas no trabalho, especialmente os mais jovens, cria uma aura de respeito e liderança que inspira.

20. Cuidar das gerações futuras é uma necessidade humana e não cumprir este papel constitui um fracasso na segunda parte da vida humana. Vou enfatizar que não estou falando de leis, obrigações culturas atuais, ou ética. Eu estou falando de algo mais profundo, da responsabilidade que os adultos da espécie Homo sapiens tiveram desde o surgimento da nossa espécie, cuidando dos bebês, crianças e jovens, assumindo a responsabilidade por ensinar e proteger, pois acredito que este comportamento está inserido na nossa natureza e desenvolvimento pessoal – cumprir esta responsabilidade traz autoestima, significado e equilíbrio com o sistema. Este fenómeno pode ser demonstrado também pelos benefícios de saúde e bem-estar que o trabalho voluntário traz para o indivíduo que o pratica. Trabalhar como voluntário gera inúmeros benefícios de saúde e reduz a mortalidade a longo prazo.

21. Para ilustrar esse ponto, do valor que praticar o alocuidado traz para o indivíduo que o pratica, talvez a melhor forma seja através de uma estória, o filme de animação “UP altas aventuras”, que na minha opinião e um dos melhores filmes que já vi, ilustra bem o impacto individual de se engajar no alocuidado. Outro exemplo excelente é o filme “Um homem chamado Otto”, com o ator Tom Hanks, que também ilustra a transformação que Otto passa. Outro exemplo excelente é o filme Mr. Holland – adorável professor, com o ator Richard Dreyfuss, estes filmes mostram como o alocuidado conecta o indivíduo com algo maior e muda a percepção expandindo a visão de mundo além dos próprios problemas e dores, transformando a perspectiva da vida e trazendo um novo significado. Considere a possibilidade de assistir estes 3 filmes como tarefa de casa, pois eles ilustram bem o impacto de parar de olhar para o próprio umbigo. 

22. Gostaria também de sugerir um exercício de reflexão, reveja seu calendário, seu celular e suas agendas, colete dados de como você gasta o tempo no seu trabalho, na vida pessoal, quando está em casa. Olhando para fatos e dados sistematicamente coletados, sem confiar na sua própria intuição, memória ou percepção, responda as seguintes perguntas. Quanto tempo eu dedico a proteger as gerações futuras? Como o meu futuro self olharia para a forma como eu estou gastando o meu tempo hoje? Com orgulho? Com arrependimentos? Estou eu conectada com o futuro da humanidade? Enfatizo a importância de basear esta análise em dados coletados sistematicamente, pois gostaria de evitar 2 extremos, de um lado, uma pessoa que acredita ser generosa e não aloca nenhum tempo ou recurso para tal, de outro, uma pessoa extremamente generosa com uma crítica muito profunda de si mesmo, autoavaliação raramente é precisa. Falarei sobre estes vieses cognitivos no futuro.

23. Quando o engajamento com o bem-estar das pessoas e das futuras gerações é uma constante na nossa vida, os nossos problemas ficam menores, pois o olhar é panorâmico. Porém quando não se pratica o alocuidado, mais individualista fica nosso comportamento, mais desconectado do sistema, maior a incerteza, menor o sentimento de pertencer (belonging), gerando dor, medo e insegurança, tornando o comportamento mais individualista ainda. Este é um círculo vicioso em que a dor gerada pela desconexão piora o comportamento que gera a desconexão. É um pouco paradoxal imaginar que as pessoas com paz interior são aquelas que não pensam tanto assim em si mesmas, mas acredito que este é exatamente o caso.

24. Portanto, revendo a ciência de hoje, eu não consigo conceber uma festa de aniversário de 65 anos na qual uma pessoa se sinta confiante, com clareza de ideias e proposito, plena e completa, com profundo autoconhecimento, sem arrependimentos significativos, com relações sociais profundas e uma densa sensação de pertencer (ou seja, saúde sistêmica) e ao mesmo tempo não tenha dedicado nenhuma atenção ou esforço ensinando, cuidando, apoiando e colaborando com as gerações futuras. Negligenciar o alocuidado significa desconectar-se do sistema e do futuro da nossa espécie. Chegar ao fim da vida com um legado, observando as pessoas da geração futura prosperar, sabendo da própria contribuição para tal, é um privilégio que causa efeitos colaterais de um profundo amor-próprio e um caminhar extra confiante, refletindo a convicção de um trabalho bem-feito!

25. Por favor me enviem sugestões, críticas construtivas e perguntas. Para concluir, caso você ache que este é um assunto que vale a pena, por favor se inscreva e espalhe essa notícia, tem um novo podcast - Conexão Sapiens: a ciência desvendando você. 

26. Este episódio e dedicado in memoriam para o Dr Emil Sabbaga.

27. Um grande abraço do Kald.

 

 

·       Não acredito que haja uma palavra que completamente capture o conceito que gostaria de apresentar hoje, que é a necessidade humana de proteger o futuro dos mais jovens com compromisso e paixão - utilizarei o termo alocuidado. O prefixo alo significa mais ou menos o oposto do prefixo auto, portanto a palavra autocuidado seria grosseiramente o oposto alocuidado. Eu fiz algumas buscas e não consegui achar esta palavra nos dicionários online de português, expandindo minha praxe de inventar palavras, a definição que utilizarei nesta discussão de hoje descreve o alocuidado como o cuidado, no sentido de proteger, nutrir, orientar, ensinar e ajudar, que é ofertado a um ser que não faz parte da família nuclear. Este cuidado pode se referir a qualquer ser vivo, porém com uma ênfase em proteger as pessoas mais jovens e/ou mais vulneráveis. De uma forma geral, significa assumir uma porção apropriada da responsabilidade que a humanidade como um todo deve ter pelo bem-estar geral dos seres vivos e em particular das pessoas da próxima geração, refletindo o nosso compromisso com o bem-estar de todos hoje e amanhã.

·       Extended parenting and the evolution of cognition. Natalie Uomini, Joanna Fairlie, Russel D Gray, Michael Griesser. Phil. Trans. R. Soc. 2020 B 375: 20190495. 

·       The evolutionary origin of human hyper-cooperation. Burkart, J., Allon, O., Amici, F. et al. Nat Commun 5, 4747 (2014).

·       Looking for unity in diversity: human cooperative childcare in comparative perspective. Burkart JM, van Schaik C, Griesser M. 2017 Proc. R. Soc. B 284: 20171184.

·       Broadening Perspectives on the Evolution of Human Paternal Care and Fathers’ Effects on Children. Lee T. Gettler, Adam H. Boyette, and Stacy Rosenbaum, Annu. Rev. Anthropol. 2020. 49:141–60.

·       Montessori education's impact on academic and nonacademic outcomes: A systematic review. Campbell Systematic Reviews. Justus J. Randolph, Anaya Bryson, Lakshmi Menon et. al. 2023;19:e1330.

·       Feldman, R. (2023). Father contribution to human resilience. Development and Psychopathology 35: 2402–2419.

·       Thornhill-Miller, Branden, Anaëlle Camarda, Maxence Mercier, Jean-Marie Burkhardt, Tiffany Morisseau, Samira Bourgeois-Bougrine, Florent Vinchon, Stephanie El Hayek, Myriam Augereau-Landais, Florence Mourey, and et al. 2023. Creativity, Critical Thinking, Communication, and Collaboration: Assessment, Certification, and Promotion of 21st Century Skills for the Future of Work and Education. Journal of Intelligence 11: 54.

·       Stuart, J, Kamerade, D, Connolly, S, Ellis Paine, A, Nichols, G & Grotz, J 2020, The impacts of volunteering on the subjective wellbeing of volunteers: A rapid evidence assessment. What Works Wellbeing.

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