Chá Comigo, Podcast de Tsering Paldron

Tenho uma dor na humanidade

Tsering Paldron Season 1 Episode 22

Plagiando a Mafaldinha, que num dos seus cartoons dizia ter acordado com uma dor na África, este chá é sobre a dor profunda da nossa humanidade perante a destruição e o sofrimento, tão completamente desnecessários, destes últimos dias. De há duas semanas para cá, acho que não há quem não sinta o peso e a tristeza que assola o planeta. Então, fique por aqui enquanto lhe sirvo um chá que espero seja reconfortante.

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Veja a minha página: http://www.tseringpaldron.com/pt

 Há umas quantas chávenas de chá atrás houve uma a que eu chamei “Éramos felizes e não sabíamos”. Foi há um ano e nela eu referia-me a todas as mudanças que a pandemia trouxera à nossa vida e à necessidade de vivermos plenamente cada momento. Hoje, enquanto o Omicron ainda anda por aí a fazer das suas, uma outra realidade, cheia de ameaças, traz à nossa vida novas incertezas, mais dores e mais perdas.

Normalmente não vejo notícias. Não percebo de geopolítica nem de economia, por isso, não sei fazer análises inteligentes ou emitir opiniões informadas como os peritos que desfilam a toda a hora nos canais de notícias. Só sei que, desde que as notícias chegaram dando conta do início da invasão, uma profunda tristeza tomou conta de mim.

Desde há milénios, todas as religiões do mundo têm-nos ensinado como estamos unidos, como somos interdependentes – irmãos e irmãs como algumas dizem. Elas têm-nos continuamente informado que o mal que fazemos aos outros é a nós que fazemos. Mas teremos nós ouvido? Teremos nós sentido na pele e no coração a dor dos outros?

Sim e não. Quando se trata dos “nossos” sim. E talvez ainda mais do que se fosse a nossa. Todos conhecemos a dor dilacerante de ver o sofrimento das pessoas que amamos e a sensação de que preferiríamos ser nós a sofrer. O problema, porém, é que pomos a mesma intensidade em odiar e querer magoar quem achamos culpado da dor dos nossos seres amados. E isso é muito perigoso.  

Se não tivermos cuidado, a revolta e a sede de justiça – que poderão ser justificadas até certo ponto – tomam conta de nós e tornam-nos tão cegos e tão cruéis, ou mais, quanto os nossos adversários. E embora a solidariedade seja sempre uma coisa bonita de se ver, ela resulta muitas vezes da união criada pela ideia de um inimigo comum. E a sua outra face é o ódio contra ele.

Eu sei que apelar à paz, ao diálogo e ao entendimento, em momentos como estes, parece insuficiente. A verdadeira questão, porém, não é saber quem tem razão, nem mesmo (e sim, isto é horroroso de se dizer) quem está a ser injustiçado, quem é o opressor e quem é a vítima, mas como evitar a escalada de violência e de destruição que não beneficia ninguém, nem a curto nem a longo prazo.

É por isso que a diferença entre a empatia e a compaixão é tão crucial. À primeira vista podem parecer a mesma coisa: a reação ao sofrimento alheio. Mas, na prática, são coisas bem diferentes, com resultados potencialmente opostos. 

Isto porque, com empatia, juntamo-nos ao sofrimento dos outros, mas ficamos tão envolvidos que não conseguimos ser realmente úteis enquanto que, com compaixão, distanciamo-nos da emoção para nos perguntarmos o que podemos fazer para ajudar.

Vale a pena apontar pelo menos quatro diferenças fundamentais: 

A primeira é que a empatia é impulsiva ao inverso da compaixão, que é intencional. A empatia é uma reação automática da mente que nos faz sentir as emoções dos outros com o mesmo grau de intensidade e, por vezes, de falta de discernimento. Quando estamos sob a influência das emoções, não conseguimos raciocinar com clareza, de forma que os sentimentos, pensamentos e decisões que tomamos são gerados principalmente de forma inconsciente. As decisões que tomamos com base na empatia não ponderam consequências e são, muitas vezes, completamente desproporcionadas e ineficazes.

A compaixão, por seu lado, ao distanciar-se da emoção pura, é muito mais reflexiva e deliberada. Os sentimentos, pensamentos e decisões nascidos da compaixão passam pelos filtros da consciência, são processados por coisas como valores, princípios de ética de justiça e de universalidade, o que significa que são muito menos parciais, muito mais sábios e universais, muito mais eficazes. 

Com compaixão, ponderamos as consequências das nossas ações e procuramos soluções que minimizem os resultados negativos e otimizem os positivos. 

A segunda diferença é que, enquanto a empatia divide, a compaixão é unificadora. Como já disse, a empatia é a tendência para nos juntarmos ao sofrimento dos outros, principalmente daqueles que estão próximos de nós. Movidos pela empatia, somos capazes de grandes sacrifícios e mesmo de dar a vida por desconhecidos, desde que sejam reconhecidos como fazendo parte “do grupo”. Mas quando se trata de ajudar os que estão “fora do grupo”, não estamos tão prontos. Estudos recentes revelaram que a empatia desencadeada pela conexão social torna mais provável a desumanização dos indivíduos pertencentes a um grupo externo. No extremo, a empatia pode alimentar a aversão àqueles que são diferentes de nós.

Já a compaixão é a simpatia pelo sofrimento dos outros, independentemente da sua identidade social ou pessoal. É a perspetiva de que no sofrimento de qualquer pessoa há uma humanidade comum – o reconhecimento de que, independentemente da cultura, da raça, da orientação sexual ou da idade de alguém, somos iguais no nosso desejo de não sofrer e de sermos felizes. A compaixão exige que nos elevemos acima dos preconceitos e do partidarismo para vermos todas as pessoas como seres humanos com o mesmo valor. 

A terceira é que a empatia é paralisante enquanto a compaixão é proactiva. Embora a empatia seja o ponto de partida para a compaixão, podemos ficar presos nela. Ficamos assoberbados com o sofrimento alheio e, se não fizermos nada para o remediar, a empatia pode-se transformar em ruminação, aflição e desânimo. Pessoas propensas a respostas empáticas também são mais propensas a ficar desanimadas e depressivas. Isto é particularmente crítico em situações como a atual, em que nos sentimos impotentes.

A compaixão, por seu lado, é construtiva. Começa com empatia, mas depois volta-se para fora, com a intenção de ajudar. Com compaixão, escolhemos conscientemente transformar a emoção em ação, tentando perceber as formas de ajuda que temos ao nosso alcance, seja ela direta ou indireta. 

A quarta é que a empatia é esgotante, ao inverso da compaixão que é regeneradora. Sentir o sofrimento alheio, com o tempo, esgota-nos. Quando a empatia é acionada diante do sofrimento dos outros, somos bombardeados por emoções e experiências negativas que, com o tempo, esgotam os nossos recursos e prejudicam o nosso bem-estar mental. É o famoso burn-out que tantos profissionais de saúde, cuidadores ou voluntários em situações de emergência sentem, quando confrontados com o sofrimento alheio por longos períodos de tempo.

Mas, como a compaixão é intencional e focada em soluções – centrada em como ajudar os outros, ela considera ativamente as várias possibilidades e é, portanto, ativa e regeneradora. Além disso, como as situações estão constantemente a mudar, a compaixão exige constante adaptação e criatividade. Por fim, quando de facto sentimos que ajudámos, sentimo-nos muito bem. Ajudar é gratificante e ficamos motivados a fazê-lo de novo.

Entender bem esta diferença é fundamental no momento que estamos a atravessar. O mundo Ocidental uniu-se contra esta guerra absurda, de todos os lados surgem manifestações de solidariedade e apoio. Porém, se apenas ficarmos sentados, algumas horas por dia, a absorver todo o sofrimento e a devastação que as imagens nos mostram, sentindo empatia pela Ucrânia e raiva pelo causador de tudo aquilo, essas emoções de desespero e profunda tristeza acabam por nos inspirar apenas medo, ansiedade e raiva, sem qualquer benefício para ninguém. Pior do que isso, uma vez que estamos todos tão intimamente ligados, a energia de confronto e de intransigência que geramos cria mais tensão no campo energético do planeta e dificulta a paz. 

Mesmo que não possamos fazer mais nada, podemos contribuir para a paz, mantendo-nos em paz nós mesmos. É importante não nos deixarmos levar à raiva, tomando partido. O escritor russo Maximilian Voloshin escreveu: “Quando a guerra assola a terra, dividindo a humanidade em duas fações irreconciliáveis, é necessário que alguém reze por todos os que estão em guerra: amigos e inimigos. Em tempos de crueldade e de cegueira generalizadas, temos de resistir ao ódio e ao sentimento de vingança e conjurar a realidade louca - com boas ações.”

Quando, mesmo apenas algumas pessoas se encontram num estado interior de paz e tranquilidade, esse estado reflete-se no mundo em redor.

Um estudo chamado “Projeto Internacional de Paz no Médio Oriente” cujos resultados foram publicados pelo “Journal of Conflict Resolution” (1988), pode dar-nos uma ideia de quantas pessoas são necessárias para criar harmonia no mundo.

Segundo esse estudo, para uma cidade com uma população de 1 milhão, são necessárias cerca de 100 pessoas. Para uma região densamente povoada com uma população de 6 bilhões, o número é inferior a 8.000 pessoas.

Possivelmente, quando o mundo está tão polarizado e tão agitado como agora, talvez sejam precisas mais pessoas, mais intencionalidade, mais energia para gerar um ambiente mais propício para o diálogo e a paz.

Por isso, independentemente de contribuir para aliviar o sofrimento de forma direta, qualquer um de nós pode ser uma dessas pessoas que ajuda a manter o equilíbrio do mundo. Eis o que eu tenho tentado fazer:

Sigo as notícias, mas não fico diante do ecrã horas a fio. Regozijo-me com a solidariedade e os atos de bondade humana que acontecem a cada instante, mas tento manter-me à margem de sentimentos de revolta e de retaliação, consciente de que são prejudiciais na procura do caminho da paz e do diálogo.

Tento manter uma boa higiene de vida e sinto-me grata por todas as coisas que normalmente tomo como adquiridas, tais como a saúde, a paz e a segurança, a abundância de bens e serviços essenciais, e outras. 

Medito todos os dias, cultivando a serenidade e enviando compaixão, bondade e paz pelo mundo fora. Tento ver como posso ajudar, tanto as pessoas na Ucrânia como as pessoas à minha volta. 

A auto-preservação é natural, qualquer animal se defende. A solidariedade para com o grupo, que foi o que nos permitiu sobreviver como espécie, deixa de fora o “inimigo”, o “outro”, o “de lá”. Mas talvez tenha chegado o momento em que essa lealdade e empatia pelo grupo – sobretudo quando ele é definido por um inimigo comum - têm de evoluir para um sentimento mais universal de compaixão unificadora. 

Aquilo que foi apanágio de líderes religiosos e alguns seres humanos excecionais ao longo da história, já não é opcional. Talvez tudo isto esteja a ser o rito de passagem, a evolução necessária para a nossa sobrevivência: ou evoluímos para a compaixão ou deixamos de existir.

Então a proposta é: sejamos o fermento dessa transmutação e comecemos agora.